O que aprendemos com o “Chaves” sobre o processamento da dor?

Personagem icônico da minha dolorosa geração, Chaves era a melhor série de todos os tempos da última semana. Não tinha uma refeição sequer “sem querer querendo” a sua presença ilustre, e claro, sem toda a turma que fazia parte da vila. Tudo era engraçado. Das desgraças, dos cenários tristes até as discussões sem fim. Pelo menos pra mim, até hoje inclusive. 

Tem uma coisa que provavelmente você, doloroso(a) e dolorido(a) nunca reparou. Chaves foi o maior professor da disciplina de dor de sua turma da escola. Muito mais professor neste quesito que o Girafales. Com toda sua maestria, sinceridade, humildade e razão, mostra ao longo do seriado algo que a neurociência da dor desvendou nos últimos anos: dor é uma resposta do nervoso sistema nervoso quando há alguma ameaça detectada pelo cérebro. 

Todos os personagens do seriado representam algum grau de ameaça ao Chaves, em contextos diferentes, em graus diferentes, menos a Paty, sua meio que namoradinha de portão (não é a teoria do portão da dor não). Nunca esqueça que dor tem a ver com contexto, com o cenário vivenciado e não com lesão ou dano ao corpo. E por falar nisso, as cenas em que o Chaves mais sentida dor / chorava / fazia MiMiMi / PiPiPiPiPi era quando apanhava 🙁

Quais / Quem eram as principais ameaças ao Chaves?

Definitivamente, quase todos os personagens da trama ligavam a rede neural de saliência do Chaves. Saliência é um fenômeno que chama a atenção do cérebro, por exemplo, cor vermelha, forma pontuda, barulho estridente, ou seja, que se sobressaem sobre outros. Olhos, ouvidos, boca e nariz, além do tato, formam parte do nosso sensorial para detectar estímulos do ambiente que recebemos em nosso corpo. Quando estes estímulos são além da conta ou quando estamos mais sensíveis (Chaves era um Sensibilizado Central de carteirinha), representam potencial ameaça a integridade do corpo. 

Quico, Chiquinha, Seu Madruga, Prof Girafales, Dona Florinda, Dona Clotilde, Sr Barriga, Ñoño, Jaiminho (o Carteiro) e Pópis tem algo em comum: ameaçavam o Chaves. E frente a essas ameaças, o Chaves reagia à moda da casa, ou seja, à sua maneira. Ou entrava no Barril (quando apanhava) ou entrava em Piripaque (quando o bicho pegava). Também saia correndo ou até mesmo reagia partindo pra cima. Essas são as suas dores, as suas respostas dolorosas à ameaça! 

Mesmo que sejam na maioria das vezes palavras apenas palavras pequenas palavras momento, tinha sempre que ser o Chaves mesmo ou de novo. Aliais, foi o próprio Chaves que também ensinou como detectar ameaças de outros (quase um nociceptor). “Já chegou o disco voador”…avisava ao Sr Madruga que a cobrança do seu aluguel estava por vir. Detecção – – Alarme ligado – – Ameaça – – detectada – – Resposta em potencial – – Dor em potencial!

Anos luz após seu lançamento (1972), continuo aprendendo com o Chaves sobre dor. Em cada célebre frase, em cada cenário, a cada maneira como ele agia e reagia. Estava tudo ali e nem a neurociência ainda havia estudado o cérebro direito no quesito processamento da dor. Ninguém teve a paciência que ele teve comigo de esperar eu mesmo estudar dor. Isso isso isso. Obrigado sempre Chaves. E fica a velha lembrança sobre os diagnósticos em dor crônica: é de laranja que parece de limão, mas tem gosto de tamarindo. 

Artur Padão – Fisioterapeuta Doloroso

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